A Herança Psíquica - Renata Whitaker Horschutz

Listei nesta postagem alguns trechos do artigo "A Herança Psíquica" de Renata Whitaker Horschutz. O artigo apresenta questões sobre a herança psíquica que recebemos dos nossos pais e familiares, ressaltando a importância de conhecermos e lidarmos com estes "fantasmas familiares''.

Segue o link para leitura do trabalho completo: A Herança Psíquica


A progressão da análise vai, pouco a pouco, mostrando que muito da história que o analisando conta ao seu terapeuta dificilmente encontra causas ou motivações na curta vida daquela pessoa. Muitas síndromes, concepções e fenômenos parecem ultrapassar ou anteceder a vida individual, colocando-se antes ou até muito antes de seu nascimento. Esse fantasma habita nos porões ou nos sótãos do inconsciente familiar, até que algum dia um de seus membros resolva enfrentá-lo, desmascará-lo e despotencializá-lo. 

Este processo, alcançado através da tomada de consciência, e sua conseqüente liberação de energia, tornam possível a libertação e a autonomia das futuras gerações, então aptas a dar novos passos, trazendo novas possibilidades para sua história, tanto em seu aspecto pessoal como em relação ao coletivo. Muitas vezes os membros das mais recentes gerações não conseguem discernir nem compreender as imposições de suas famílias, e acabam por agir segundo a tradição e crenças de seus antepassados. Por outro lado, paradoxalmente, sabemos que quanto mais inconsciente for o motivo, mais poderoso ele se tornará, podendo reprimir, ou mesmo anular a identidade e projetos de vida de seus depositários, que acabam perdidos em meio a alegorias e signos incompreensíveis, impossibilitados de recuperar a memória de si mesmos. 

A transmissão psíquica ocorre em qualquer ser humano independente de sexo, cultura e meio social a que pertence. O passado marca, tanto para o bem como para o mal, o presente de uma pessoa, e isso atravessa as gerações, todas elas marcadas pela presença do “fantasma familiar”. A vida particular de uma pessoa pode se tornar inteiramente alienada pela interdependência psíquica, pois ela pode, de fato, ser a reprodução programada e automática de várias histórias de familiares que vieram antes dela. A linha genealógica mostra como cada ser humano pertence a um mundo que lhe é preexistente. Esse mundo anterior pode determinar toda a sua existência, tanto positiva como negativamente. Nesse caso, ele pode simplesmente reproduzir uma identidade transferida, e não a sua identidade própria. Isso acontece quando a pessoa não consegue romper com a influência inconsciente dos antepassados, a fim de recriar sua própria experiência de viver no mundo que lhe é oferecido.

Os pais ao terem uma obstinada esperança de uma vida melhor para seus descendentes, em vez de se fixarem nas dificuldades e dores vividas, acentuam a possibilidade de qualidade de vida para os filhos e para a vida de todos que os cercam. Os pais pensam que, desse modo, ajudarão a mudar as futuras gerações. Todavia, querer a perfeição para os filhos, desejar que eles sejam e vivam tudo que eles, como pais, gostariam de ter sido e vivido, é, na verdade, apossar-se da vida dos filhos, não lhes deixando a possibilidade de serem e de fazerem suas próprias escolhas. 

Aparentemente incondicional e irrestrito, o amor dos pais que querem que os filhos sejam perfeitos e realizem o que eles não conseguiram realizar, é na verdade uma forma de se imortalizarem através de sua prole. Esse pretenso amor representa um egocentrismo infantil exacerbado, que aprisiona os filhos, através dos quais, no fundo, eles desejam ser amados e envaidecidos. Trata-se, propriamente, de uma manipulação “com boas intenções”, pois eles transferem seus próprios destinos para os filhos, impondo-lhes um fardo que os impedirá de ter sua identidade própria. E convém notar que a palavra pais, usada neste texto, refere-se ao pai e à mãe, porque herdamos a influência psíquica dos dois. Assim, só conseguiremos realizar nossa própria história quando conseguirmos realizar conscientemente uma síntese da história familiar que recebemos. 

Contudo, mesmo tendo já conquistado certo desenvolvimento, muitas vezes nos flagramos repetindo falas, atitudes, ações e reações de nossos pais. Com efeito, mudar hábitos profundamente arraigados durante gerações não é fácil. A transmissão psíquica ocorre por apropriação da vida do outro, abrindo espaço para as identificações e repetições. Caso o filho não consiga discernir entre seus próprios desejos e os desejos dos pais, acabará seguindo a trajetória inconscientemente predeterminada por seus progenitores. Isso poderá lhe custar o sacrifício de sua existência inteira. 

Por vezes, essa transmissão é resultado de um sentimento de ódio egocêntrico: os pais atribuem ao filho tudo que não aceitam em si próprios. Ou o filho é odiado por ser diferente do que os pais gostariam; ele “trai”, por assim dizer, o desejo onipotente deles. Como não há espaço para a criança desenvolver sua identidade própria e livre do poder alienante do egocentrismo dos pais, ela pode acabar inteiramente submissa a eles, realizando uma história que não é a sua. Em geral, essa alienação gera uma atitude de indiferença diante da vida, devida à ausência de auto-reconhecimento, pois o indivíduo passa, de fato, a viver uma vida que é apenas representação da vida de outra pessoa. 

Há muitas histórias de vida em que os pais não conseguem amar os filhos sem deles se apoderarem, incapazes de reconhecer a individualidade e a liberdade dos filhos, o que os leva a odiá-los ou a sujeitá-los à sua própria história, dominada pelo ódio. Ao mesmo tempo, assistimos ao processo doloroso e violento dos filhos, na tentativa de se libertarem da identificação e da dependência em relação às figuras parentais. Esse processo heróico permitir-lhes-á reconstruir histórias de vida, desvinculando-se do passado e libertando seu próprio desejo do sufocante desejo parental. Quando a pessoa fica aprisionada na história e nos desejos de seus antepassados, fica também impossibilitada de recuperar a memória de si mesma, de seu próprio projeto de vida, daquilo que ela realmente veio realizar nesta existência. Sua identidade é anulada, e sua vida perde o significado e o sentido. 

Precisamos enfrentar nossos medos, transformando-os em esperança de um futuro melhor, restabelecer nossa ligação com o passado, despertando a memória da vida dos antepassados, que são as raízes que sustentam nosso senso de continuidade. Essa memória das raízes produz o discernimento do que é útil e do que é prejudicial, ajudando-nos a ficar livres para fazermos a opção do que queremos que continue em nós e para o futuro.Devemos conquistar conscientemente tudo o que nos foi dado inconscientemente. O que nos fortalece ajuda-nos a romper com os padrões negativos, a fim de termos esperança em relação ao futuro e realizarmos ações concretas para transformar o que nos prejudica e nos impede de ser nós mesmos. 

O passado não pode ser mudado, sem dúvida. Mas podemos optar por reprimi-lo, ou por conhecê-lo e utilizar esse conhecimento para transformar o futuro. Quando nos libertamos de nossos padrões ancestrais, curamos nossa árvore genealógica e, desse modo, ela se revitalizará e se tornará mais valorosa e bela. As maiores sombras nas famílias são geradas pelos segredos e pelas mentiras que geram culpa, vergonha e ressentimento. O que não é dito, não percebido, não visto, não terminado, e o que é subliminar sempre influencia nossa vida muito mais que o esclarecido e o sabido. Ainda que seja algo terrível, a verdade é sempre o melhor caminho, pois, segundo o Evangelho, “a verdade liberta” (João 8,32). 

Buscar o indizível, o inenarrável, o traumático, as mentiras, os segredos, as metáforas, as imagens, é uma forma de colocar um limite para a influência negativa das histórias de nossos ancestrais, e também um modo de desenvolver nossa gratidão pelas heranças construtivas que recebemos. Isso nos alicerça e nos traz o saudável sentimento de pertencer a uma história e a uma linhagem que fundamenta solidamente nossa psique.

0 comentários:

Postar um comentário